quarta-feira, 1 de junho de 2016

Ecos da apresentação

Venho por este meio partilhar aquele que foi o meu dia 27 de Maio, dedicado à apresentação do Livro de Nuno Dala, um dia longo que me encheu as medidas e foi repleto de emoções. O objectivo era fazer uma festa, entre Lisboa e Luanda, para a Joaquina, e apresentar o exemplar número 1, com encadernação de luxo, a ser endereçado ao Presidente da República de Angola. Mas tratava-se também de fazer um balanço da iniciativa editorial de autor, a financiar solidariamente, aspecto a que os media não prestaram muita atenção. Por isso se justifica o presente relato, que obviamente se expõe à crítica.

Começarei por contextualizar os ambiciosos objectivos da campanha de lançamento do Livro, numa edição de autor, e os resultados até agora alcançados, bem como uma antevisão da continuidade do projecto. Depois, numa linha cronológica, contarei como recebemos o jornalista da DW, João Carlos, com quem partilhámos o almoço, bem como o resultado da entrevista no seu canal. Depois contarei como cantámos os parabéns e brindámos à Joaquina, com a equipa da RTP África, apresentando ambos os pontos de vista. Em seguida, darei conta de algumas das pessoas que estiveram presentes, numa animada conversa com William Tonet, sobre a nova geração revú. Depois da despedida do mais velho, passámos para a rua, onde continuámos a discussão sobre o fraccionismo e o 27 de Maio de há 39 anos, contando com a presença do poeta e dramaturgo luso-angolano René Mussenga Vidal.

Conforme já previamente anunciado, o objectivo desta campanha é recolher adiantadamente o pagamento de cerca de 400 exemplares do Livro do Nuno, de forma a permitir pagar uma tiragem de 1000, cujos lucros reverterão para a família do Nuno. Ora para já, estão vendidos apenas 115 exemplares, o que é manifestamente insuficiente. Em relação à continuidade do projecto, recebemos várias sugestões interessantes, entre elas a organização de debates com o propósito expresso de recolha de fundos, o recurso a crowdfunding, a emissão de senhas numeradas, ou a domiciliação da venda antecipada num site português como o Coisas ou o OLX, com pagamento por MultiBanco.

Agradeço desde já a todos/as aqueles/as que contribuíram com as suas ideias, entre eles/as o jornalista Orlando Castro, do Folha 8, a Ana Monteiro, activista da Amnistia Internacional, Dona Manuela Serrano, activista da Casa de Cabinda, e Ana da Silva, professora da Escola Superior de Educação de Santarém. Como promotor do autor, tentarei na medida do possível implementar e viabilizar todas elas, no sentido de podermos aceder o mais rápido possível à edição em papel, reunida a quantia necessária. Aqui neste blog iremos publicando as estatísticas desses recebimentos e o número de exemplares ainda em falta para atingirmos o almejado objectivo.

Alguns jornalistas fizeram chegar queixas à organização, contestando a escolha do espaço, numa zona que consideraram insegura, chegando alguns a afirmar que arrepiaram caminho. No entanto, essa escolha do ghetto não foi inocente. Julgo que nem o jornalista da DW, João Carlos, nem a equipa da RTP, Isabel Rosa e Fernando Nobre, sentiram qualquer constrangimento ou ameaça à sua segurança, bem pelo contrário, fizeram notar a sua empatia pela adequação do espaço alternativo, tendo tecido fartos elogios à gastronomia angolana que se fez representar na festa da Joaquina, bem regada com umas tantas Cucas.

Mas comecemos pelo princípio.

O João Carlos, jornalista são-tomense da DW, pedira-nos para darmos uma entrevista um pouco mais cedo da hora prevista (16h), pois precisava fechar a edição do último dia útil da semana. Combinámos para depois das 13h, e partilhámos uma magnífica muamba de galinha com funge, com o Senhor Eduardo. Após o que mantivemos uma conversa informal, durante a qual o jornalista pôde folhear o exemplar do Livro. Concedemos depois uma entrevista áudio no exterior, a qual passou no jornal da noite desse dia e saiu depois em notícia no portal.

Entretanto, o João Carlos teve de sair para preparar a sua peça rádio-jornalística, e chegou a equipa da RTP, que provocou um misto de espanto e reboliço no bairro. Pelo nosso lado, as coisas não corriam bem, e a pen que compráramos para ter internet no nosso portátil naquela ocasião, recusava-se a funcionar, apesar das insistências de várias pessoas. Entretanto estava a mesa posta para a festa, e chegada a hora marcada para a confraternização via Skype, interagindo com Luanda, onde estava reunida a família do Nuno para a ocasião do aniversário da Joaquina, valeu-nos a jornalista da RTP, Isabel, que logrou fazer a ligação no seu telemóvel.

O momento acabaria por ser o mais emocionante do dia, cantando os parabéns à Joaquina, no dia do seu primeiro aniversário, em sincronia entre Portugal e Angola, e passou na primeira edição do Repórter África de segunda-feira dia 30 de Maio, a partir dos 11 minutos. Mostramos também foto da equipa da RTP, flagrada pelo pleno directo, em Luanda, bem como foto da esposa do Nuno, a Raquel, e da aniversariante, a filha Joaquina, trajadas a rigor.

Fizemos depois um pequeno lanche, com deliciosos petiscos angolanos, que mereceram grandes e rasgados elogios à «mãe» África, que fizemos acompanhar por umas Cucas em lata. Passámos depois para o exterior, onde dei a entrevista à RTP África, apresentando o livro e realçando o seu interesse no actual contexto político. Com os jovens injustamente condenados por estarem a ler um livro (como é possível prender alguém por ler um livro? pois se por vezes nem concordamos com os autores!), tal como Marcos Mavungo o fôra por estar a pensar em organizar uma manifestação, pretende-se com esta atitude mostrar que os jovens não só liam obras estrangeiras, mas também escreviam, assumiam, sistematizavam, num pensamento próprio, as suas ideias em gestação, numa fértil reflexão política, assente numa cidadania consciente e num consistente patriotismo.

Pressionado pela queda da cotação do petróleo, o regime deu mostras de endurecimento, deixando cair as máscaras da democracia, assumindo em definitivo o seu carácter mais que autoritário, ou seja, verdadeiramente totalitário, como se constatou com o caso Kalupeteka, curiosamente o Presidente da República nomeado na famosa lista que deu origem a uma peça de acusação, também ele preso de consciência, como os/as 17. No entanto, são prisões que enfraquecem manifestamente o sistema ditatorial, bodes expiatórios que apenas servem para caricaturar as fraquezas e fragilidades do regime, inteiramente votado a um sistema de amplificação de um poder pessoal megalómano, mas sem qualquer consistência, como o vem demonstrando a realidade e fica bem patente no Livro do Nuno. A sociedade angolana e global evoluíram imenso, e não teria hoje qualquer cabimento um novo 27 de Maio, para impedir a emancipação política e cidadã ou sequer o pensamento crítico.

Depois da saída da equipa da RTP, chegou William Tonet, com quem mantivemos uma animada conversa sobre a nova geração revú. Falávamos da resistência mental à ditadura, e dos grandes líderes africanistas, de Nito Alves e do 27 de Maio de 1977, quando o MPLA exterminou o pensamento crítico. Nesse contexto, num impulso de simpatia para com a luta revú, comparei o novo Nito Alves e Dago a Nelson Mandela, o que provocou a reacção de William Tonet, que considerou tal comparação desproporcionada. No entanto, se bem que salvaguardadas as devidas distâncias, continuo a pensar que estes jovens são uns «monstros» de dignidade, heróis da liberdade representando todo um povo, que jaz agrilhoado sob o jugo do medo imposto pelo sistema de pensamento único, e privado dos seus mais elementares direitos à liberdade, de pensamento, de discussão, de expressão, para já não falar do direito à manifestação, formalmente garantido pela constituição em vigor.

Finalmente, com a saída de William Tonet, a conversa saiu para a rua, onde continuou animadamente. Alguns mais velhos falaram do 27 de Maio, do medo, dos assassinatos, para espanto de alguns mais novos que se iam juntando à conversa, alguns dos quais manifestaram surpresa perante o número de vítimas de largas dezenas de milhar. Um dos jovens que participaram dessa interessante conversa ao pôr-do-sol foi René Mussenga Vidal, poeta e dramaturgo angolano que assume uma curiosa identidade lusófona, a qual nos deu o privilégio de partilhar connosco (e já havia partilhado em programa do RTP África, na 2da parte do Bem Vindos de 3 de Março deste ano, aos minutos 19'40 e 30'50), tal como o seu livro Ecos do Silêncio, do qual nos recitou uma poesia.

Permito-me um pequeno apontamento de poesia, invocando a propósito o Fernando Guelengue, com o seu poema Ecos de Revolta,


Da cubata demolida
O som de trombeta
Na riqueza mal distribuída
Na tinta da caneta

Bum, bum bum
A revolta ascenderá 

Da opressão desmedida 
Cidade militarizada 
Muralhas entre povos 
Juventude desvalorizada 

Bum, bum bum 
A revolta ascenderá 

Cantos de revolta
Noites invisíveis
Planta irrigada
No sol da esperança

Bum, bum bum 
A revolta ascenderá 

Crianças exploradas 
Prostituição avançada 
Justiça das letras 
Sangue nas canetas 

Bum, bum bum 
A revolta ascenderá 

Convicções desrespeitadas 
Liberdades encravadas 
Monopólio desmedido! 
Manifestantes fodidos

Bum, bum bum
A revolta chegará 

Luanda, 26 de Junho de 2013

Mas não resisto a transcrever igualmente o René Vidal, em Ecos do Silêncio poema do livro homónimo:

De súbito, Alcácer Quibir!
No esplendor da sua juventude,
O iluminado!
E se concretize o encoberto
Renascendo o Quinto Império!

Mas essa voz é negra!...
É um filho do velho embondeiro!

_Quem és tu? Que cantas por todos?!

_Criar nas mentes inertes,
a transformação do pensamento?
a consciência do ser?
a força da mudança?

_Quem és tu!?
Que lutas contra gigantes,
que sobrevives às mandíbulas das hienas.

_Bravo herói destemido!
Pois que todos te sigam!
(dita o sagrado, que David venceu Golias
e a auréola floresceu),

_És tu o enviado?
Por quem? Para quê?
E essas cantigas que cantas
Com ricas melodias...

_É o que te vai na alma?
É a tua verdade?
_Então canta...
(...)

e ainda René Vidal, no mesmo livro, em Ciclo Vicioso

Sangram, sangram novamente 
como sangraram meus antepassados 
com chicote de algodão, de café, de cana-de-açúcar!...

Agora sangram-nos 
com chicote moderno 
mais sofisticado e letal 
Dilacerando sem piedade 
o dorso do nosso corpo inerme 

Esse chicote que traz na extremidade 
o veneno da hipocrisia! 
Esse veneno que hipnotiza os esclarecidos
enquanto os ainda mais esclarecidos
vociferam cânticos de alegria! 

Oh, caminhos distantes...
Trilhados por vós, ó Cabral, ó Neto, ó Machel, ó N'Krumá 
Ó Nierere ó Keniata ó Senghor, ó Kaunda 
Ó Boani, ó Madiba, ó Lumumba! [acrescentaria eu, ó Sankara!] 

Esses caminhos que vós abristes 
Nas íngremes fendas 
com enxadas enferrujadas 
Catanas sem gume 
Charruas puxadas a suor humano

...E inacreditavelmente, 
as fendas tornaram-se ainda mais íngremes 
O capim cresceu 
e se entrelaçou nos caminhos. 

Agora, e como antes 
Sangram, sangram novamente 
Pois esse corpo cor de sofrimento 
Habituou-se a dar sangue seu!

Para terminar, gostaria de passar um excerto do texto que Fernando Guelengue escreveu na sequência da prisão dos jovens activistas, quase em jeito de manifesto: 

A grande confusão reside no fato de se pensar que apenas esses 15 jovens querem a mudança em Angola. Somos muitos! Somos jovens que nascemos depois da independência e nem temos ainda idade própria para concorrer em eleições para presidente da República. Não somos analfabetos, não. Somos jornalistas, artistas, advogados, psicólogos, sociólogos, arquitetos, mecânicos, carpinteiros, pedreiros, marceneiros, sapateiros, taxistas, lutadores, eletricistas, militares, zungueiras, funcionários públicos, engenheiros, trabalhadores, desempregados, etc. Não queremos formar partido algum porque pensamos, discutimos e aprovamos que não é com PARTIDOS que resolvemos os problemas de uma coletividade que vem sofrendo de ano em ano devido à má gestão do erário púbico. Queremos apenas falar o que pensamos! Queremos LIBERDADE de consciência, de pensamento, de reflexão, de reunião, de manifestação, de palestrar, de estudar, de debater os problemas que temos hoje. Então, nos perguntamos como temos que nos posicionar. A resposta é simples. Esta se chama a GERAÇÃO DA MUDANÇA. É tempo de dizer BASTA!

Adira à campanha para publicação do Livro do Nuno. Já encomendou o seu?

José Fernando Gomes